segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

"As livrarias são lugares mágicos.” (Fernando Brandão)

Foto: Paulo Batelli


DEVORAR

Devorar esses livros como quem
come folhas de alface. Devorá-los,
de muitos condimentos salpicá-los,
para que afinal nos saibam bem.

Não feri-los, roê-los, esmagá-los.
Devorá=los com a fome que nos vem
da esperança talvez de iluminá-los,
de revelá-los sem tristeza, sem.

Não impulso de papirofagia,
ou de quem come cinza. Tão-somente
ir ao cerne da noite que os retém.

Devorá-los com certa nostalgia,
em nós fundi-los derradeiramente,
e então deixá-los como lhes convém.

Alphonsus Guimaraens Filho

"Nas livrarias, começa-se sempre pela mesma seção – como se começa a leitura de um jornal." (Francisco Bosco)


Foto: Paulo Batelli

Livraria (Carlos Drummond de Andrade)


Ao termo da espiral
que disfarça o caminho
com espadanas de fonte,
e ao peso do concreto
de vinte pavimentos,
a loja subterrânea
expõe os seus tesouros
como se os defendesse
de fomes apressadas.

Ao nível do tumulto
de rodas e de pés,
não se decifra a oculta
sinfonia de letras
e cores enlaçadas
no silêncio de livros
abertos em gravura.

Aquário de aquarelas,
mosaicos, bronzes,
nus,
arabescos de Klee,
piscina onde flutuam
sistemas e delírios
mansos de filósofos,
sentido e sem-sentido
das ciências e artes
de viver: a quem sabe
mergulhar numa página,
o trampolim se oferta.

A vida chega aqui
filtrada em pensamento
que não fere; no enlevo
tátil-visual de idéias
reveladas na trama
do papel e que afloram
aladamente dançam
quatro metros abaixo
do solo e das angústias
o seu balé de essências
para o leitor liberto.

O livro infindável (Pedro Du Bois)

Folheio o livro
infindável
em temas
e termos
e resumos
e resenhas
e cálculos
e artifícios
e artilharia
pesada

releio o texto
e desconcerto
palavras em letras
indispostas
aos olhos
fechados

o livro infindável
multiplicado
em páginas
repete passagens
de errados personagens:

os mortos
os amortecidos
as mortalhas
a sensação indecifrável
do mistério na página
seguinte.

Absorvo o tema e o contemplo
em escala: a janela
do mundo transportada
à página anterior.

O livro infindável traz
a perda de tempo. O tremor
da terra devastada.


(...)


Fecho o livro, apago minhas marcas
sobre o insucesso da leitura. Destaco
em riscos o ranger dos dentes.

O livro permanece infindável na estante
onde repousa o instante inicial do personagem.



Livraria da Travessa
Foto: Paulo Batelli

A cidade e os livros (Antônio Cícero)

Para D. Vanna Piraccini

O Rio parecia inesgotável
àquele adolescente que era eu.
Sozinho entrar no ônibus Castelo,
saltar no fim da linha, andar sem medo
no centro da cidade proibida,
em meio à multidão que nem notava
que eu não lhe pertencia – e de repente,
anônimo entre anônimos, notar
eufórico que sim, que pertencia
a ela, e ela a mim –, entrar em becos,
travessas, avenidas, galerias,
cinemas, livrarias: Leonardo
da Vinci Larga Rex Central Colombo
Marrecas Íris Meio-Dia Cosmos
Alfândega Cruzeiro Carioca
Marrocos Passos Civilização
Cavé Saara São José Rosário
Passeio Público Ouvidor Padrão
Vitória Lavradio Cinelândia:
lugares que antes eu nem conhecia
abriam-se em esquinas infinitas
de ruas doravante prolongáveis.

A Livraria (Márcio Catunda)



Adentro os umbrais do Edifício Marquês do Herval,
o rito de passagem conduz às dimensões lúdicas.
Desço a espiral de um subterrâneo de luzes,
giram percepções de cristal:
o olhar desvenda iluminuras,
códices de preciosa indústria.
Anticaverna do tempo, flui o rio da memória,
núcleo de referência do mundo.
Nem toda livraria é um pórtico da galáxia, insígnia da vida.
Mas se Leonardo é o patrono,
um gênio conversa com o espírito dos livros
e o acervo suscita viagens insólitas.
Nem toda livraria exalta inexorável fortuna.
Mas se a vitrine é aquarela mística, ignição do estro,
motor geracional da história,
saio pela galeria conduzindo um artefato de plástico,
repleto da prosódia universal.
Se o patrono é Leonardo,
a livraria é ponto cardeal de insônia e êxtase.
Arcádia! Ágora! Acrópole!
No frontispício está escrito:
“Livraria Leonardo Da Vinci.”

As Livrarias (Francisco Bosco)

1. O leitor passeia a esmo os olhos sobre os livros. Pára. Pega. Folheia. Devolve: em um deles talvez encontre seu desejo mais exato.

2. Hoje em dia – muitos livros, pouco espaço – é mais fácil encontrar o que não se procurava. (Tal como no amor: por acaso.)

3. Nas livrarias muito grandes é prudente ir sabendo o que se quer. Pois não é recomendável deixar o desejo solto em um labirinto de livros: ele pode se perder.

4. As livrarias muito grandes estão na fronteira entre a livraria e a biblioteca. A imensa fartura entre o saber disponível e a capacidade de leitura ameaça esmagar o desejo.

5. (E todavia – “o mavioso canto”. As livrarias muito grandes são o prado das sereias.)

6. Com a mesma alegria de quem volta a seu país e sua língua, o leitor entra em uma livraria depois de um tempo – para ele – considerável.

7. As livrarias são o consulado do leitor, um pedaço de terra natal em qualquer país estrangeiro.

8. Se fosse dono de uma, que nome teria?

9. O leitor compra o livro. O livro exato. Possuir antecipa a leitura: produz a sensação da leitura antes da leitura. Por isso os livros emprestados não têm a mesma graça: só são lidos na leitura.

10. A livraria está para a casa como a biblioteca está para o mundo.

(Francisco Bosco, As Livrarias, "Da Amizade", 7Letras, 2003)

Dias de Livraria


Fotos: Paulo Batelli

Book End's Café na Boulder Bookstore

Há poucas coisas como tomar café numa livraria. Há um pouco de displicência ao sentar-se a uma pequena mesa, ou numa banqueta, e saborear um café como nenhum outro. Seja o que o tiver trazido até ali – um livro, esperar um amigo ou apenas estar sozinho – o café parece um prolongamento da leitura ainda não iniciada. Assim como o cartaz afixado à minha frente:

“Normalmente, a Book End's tem mais fregueses do que cadeiras. Por favor, ajude-nos a resolver este problema oferecendo um lugar vazio na sua mesa a um amigo desconhecido, ou ceder a sua cadeira a um cliente novo, se já terminou sua refeição ou sua bebida. Lembre-se que você pode precisar dessa generosidade numa outra vez. Obrigado.”

A música ambiente pode ser qualquer uma, desde que não deixe os espíritos exaltados. Um soft rock blues ou uma música clássica, dependendo do ânimo do DJ de plantão no equipamento. O som confunde-se com o barulho da máquina de café que não pára de fazer expressos e cappuccinos um atrás do outro.

Todos os detalhes do ambiente contam: o formato das cadeiras, feitas para acomodar donos de cabeças pensantes ou um bom papo. O desalinho dos frequentadores nada tem a ver com o que fazem – estão de passagem, não vieram para um encontro – embora possam se deparar com vários amigos, também de passagem, ou não ver ninguém conhecido.

Apenas tomam seu café – pingado, descafeinado, carioca – e saem sobraçando um livro, um cartão ou mais um CD ou DVD. Mas o que realmente lhes deu o prazer complementar de estar ali foi o café, além do que vieram fazer – mesmo que fosse só passar o tempo – até seu próximo compromisso.

Thereza Christina Rocque da Motta
Boulder, 25/01/2005 – 16h50